Investigação busca entender quais mecanismos podem afetar a função de células T reguladoras no microambiente tumoral. Resultados poderão ajudar a desenvolver abordagens terapêuticas mais personalizadas contra doenças autoimune e câncer.
por Rogério Bordini
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uem já assistiu a uma orquestra provavelmente se perguntou por que o maestro gesticula tanto diante dos músicos. Grosso modo, seus movimentos comunicam o ritmo e a velocidade de execução da obra, mudanças de volume e entradas de instrumentos, tudo para garantir que todos toquem conjuntamente. Mas alguns podem se surpreender ao descobrir que cena semelhante ocorre em nosso corpo todos os dias, onde minúsculos “regentes” coordenam imensas sinfonias microscópicas.
Os linfócitos T (ou células T), um subtipo de glóbulos brancos (leucócitos), são frequentemente comparados a maestros pelos seus múltiplos talentos na regulação do sistema imunológico contra patógenos e organismos estranhos. Assim como um líder de orquestra interpreta uma partitura, os linfócitos T reconhecem antígenos, equivalentes a “notas” únicas associadas a esses invasores. Ao identificá-los, essas células iniciam a resposta imunológica, ativando e coordenando outros agentes de defesa.
“As células T desempenham papéis cruciais na orquestração da defesa direcionada, na destruição de células infectadas ou malignas e na regulação da resposta imunológica”, comenta Luis Eduardo Alves Damasceno, pós-doutorando da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) sob supervisão de José Carlos Farias Alves Filho, membros do Centro de Pesquisa em Imuno-oncologia (CRIO). Eles estão conduzindo uma pesquisa para compreender aspectos metabólicos e intracelulares específicos do comportamento de uma classe de células T chamada “reguladoras” em contextos patológicos, como no câncer.
Dando continuidade à série Imuno Foco, os linfócitos T são os astros da vez. Originados na medula óssea e integrantes do sistema imunológico adaptativo, recebem o prefixo “T” devido à sua maturação no timo, órgão próximo ao coração. Além disso, dividem-se em subtipos como células T citotóxicas (Tc), auxiliares (Th) e as supracitadas reguladoras (Treg). Respectivamente, elas destroem células infectadas ou cancerosas, coordenam a resposta imunológica ativando outros agentes de defesa e regulam a resposta para evitar a ativação excessiva e possíveis doenças autoimunes.
Quando a regulação entra em desarmonia
A disfunção das Tregs tem sido associada a distúrbios autoimunes, como artrite reumatoide, esclerose múltipla e diabetes tipo 1, os quais resultam de uma instabilidade entre as células T efetoras (responsáveis por acionar o alarme imunológico) e os linfócitos reguladores, levando a respostas pró-inflamatórias. Já uma superabundância de Tregs pode suprimir o sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade a infecções e ao câncer.
A aparição destas condições pode ainda estar associada a um conjunto de fatores, como predisposição genética, influências ambientais e desequilíbrios do sistema imunológico. Estresse psicológico, má alimentação, tabagismo, baixo peso corporal, exercícios excessivos e exposição a produtos químicos (fertilizantes e pesticidas) também são condições associadas à disfunção das Tregs.
No contexto do câncer, Demasceno busca compreender a relação dos mecanismos que influenciam o funcionamento das células T reguladoras. “Essas células desempenham um papel crucial no controle de respostas inflamatórias excessivas, como na autoimunidade. No entanto, elas podem ser exploradas por cânceres para suprimir a resposta imune antitumoral, o que ainda não é completamente compreendido. Vamos investigar esses mecanismos para encontrar maneiras de superar essa supressão imunológica e melhorar a resposta contra o câncer”, diz.
Para isso o pesquisador focará no metabolismo mitocondrial das células Treg – processos bioquímicos das mitocôndrias das células relacionados à produção de energia – e identificará alvos moleculares para modular suas funções supressoras. Ele e sua equipe criarão ferramentas experimentais e modelos animais deficientes em alvos específicos, avaliando como isso afeta a resposta imune antitumoral. Ao correlacionar resultados in vitro e in vivo, buscará entender o papel dos alvos moleculares nas células Tregs e sua influência no microambiente tumoral.
Um empurrãozinho para o show continuar
No embate contra o câncer, estudos têm mostrado que as células T podem se esgotar em microambientes específicos, impactando negativamente em suas funções regulatórias e combativas. Os ambientes cancerígenos, caracterizados por antígenos tumorais e redes imunossupressoras complexas, têm o potencial de levar os linfócitos T ao estado de exaustão quando expostos prolongadamente a tais condições – como o ânimo de um maestro após receber vaias em uma performance malsucedida.
Por outro lado, há tratamentos promissores que podem recuperar e potencializar linfócitos T, incluindo inibidores de checkpoint, que bloqueiam receptores inibitórios (PD-1 e CTLA-4) nestas células. A imunoterapia CAR-T, que utiliza células T de pacientes geneticamente modificadas em laboratório para expressar receptores de antígenos (CARs), também tem permitido o ataque específico às células tumorais. Embora ainda não disponíveis no SUS, esses procedimentos foram aprovados pela Anvisa e podem ser acessados via alguns planos de saúde ou em protocolos de pesquisas clínicas para testes de novos medicamentos.
“Entender o metabolismo das Tregs pode abrir caminho para o desenvolvimento de biomarcadores que permitam uma avaliação mais precisa da resposta do sistema imunológico em diferentes patologias, auxiliando na escolha do tratamento mais adequado para cada paciente.
No mesmo sentido, Damasceno já vislumbra as implicações práticas que sua investigação poderá trazer no aperfeiçoamento de terapias oncológicas. “Compreender as vias metabólicas específicas dessas células poderá fornecer insights para o desenvolvimento de abordagens terapêuticas mais personalizadas e direcionadas, visando otimizar a resposta contra doenças autoimunes e câncer, enquanto minimiza os efeitos adversos associados à supressão imunológica excessiva”.
Independentemente de suas fragilidades e ambiguidades em diferentes situações, como em doenças autoimunes ou em tumores, as células T são dignas de reverência por regerem hordas de agentes defensores com maestria. Ao final do dia, são elas que mantêm nossas funções vitais e defensivas em consonância. Nosso respeito, autocuidado e atenção científica são o mínimo que merecem.
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🌐 Converse com os pesquisadores:
- Luis Eduardo Alves Damasceno (pós-doutorando)
- José Carlos Farias Alves Filho (orientador e coordenador de subprojeto CRIO)