O tratamento se popularizou nos últimos anos com os bons resultados na remissão de tumores, mas ainda enfrenta desafios com efeitos adversos e altos custos.
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mbora a ideia de ativar o sistema imunológico para combater células cancerígenas e outras doenças possa parecer recente, hipóteses sugerem que a prática remonta à dinastia chinesa de Qin (221–206 DC), em que registros mencionam a inoculação proposital do vírus da varíola para prevenir a própria doença. Quase dois milênios depois, os médicos alemães Fehleisen e Busch observaram regressão de tumores após infecção por erisipela, enquanto o cirurgião ósseo estadunidense William Coley, em 1891, estimulou o sistema imunológico de pacientes injetando bactérias em seus cânceres. Apesar das descobertas de Coley terem sido despercebidas por décadas, elas tiveram papel crucial na imunologia moderna, como na identificação das funções das células T no final da década de 60 e aprovação das terapias baseadas em inibidores de checkpoint em 2011.
A imunoterapia revolucionou o campo da oncologia nos últimos anos ao aumentar as defesas naturais do corpo, obter sucesso em testes clínicos para vários tipos de câncer, projetar medicamentos direcionados e aperfeiçoar a medicina personalizada. O número de tipos de cânceres tratados no mundo com sucesso por imunoterapia chega a quinze e permanece crescendo, incluindo os de pele, pulmão, rim e bexiga. Um estudo conduzido no Canadá mostrou que o uso do tratamento aumentou anualmente de 2011 (3,3%) a 2019 (39,2%) e foi maior em melanoma (52%). No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tem aprovado o uso de medicamentos imunoterápicos para alguns cânceres, como melanoma (2016), pulmão (2017), mama (2019) e, mais recentemente, os do trato biliar (2022).
Contudo, apesar dos resultados promissores, pesquisadores têm se dedicado no refinamento e desafios das aplicações da terapia. Esse é o caso de Guilherme Ferreira de Britto Evangelista, doutorando em Ciências da Saúde do Einstein sob orientação do Dr. Kenneth Gollob, que investiga os eventos adversos causados pelo tratamento. Evangelista também é membro do Centro de Pesquisa em Imuno-oncologia (CRIO), grupo que tem gerado conhecimento para superar as limitações atuais da imunoterapia.
Uma guerra microscópica e uma arma em aperfeiçoamento
Considerando que o sistema imunológico é encarregado de proteger nossas funções vitais, surge a pergunta: por que ele não destrói células cancerígenas da mesma forma que combate vírus, bactérias, fungos e outros agentes infecciosos? A resposta reside no fato de que o sistema imunológico possui um mecanismo natural de “freio” que o impede de atacar o próprio organismo, regulado por moléculas conhecidas como correceptores. As células cancerígenas exploram esse mecanismo de autodefesa para se multiplicar, levando ao desenvolvimento de tumores.
“Normalmente, a gente esperaria que [o sistema imune] identificasse uma célula anormal e a matasse. Mas ela consegue, literalmente, enganar o sistema de defesa com a produção de proteínas que a “camufla” como célula normal, fazendo com que o sistema imune não a reconheça e deixe ela crescer”, comenta Evangelista em entrevista ao podcast Imuno Agentes. “Gosto de pensar nesse embate como uma cena de Game of Thrones, sabe? O sistema imune organiza uma invasão enquanto o tumor ergue barricadas e armadilhas para despistar o ataque. Nosso objetivo é romper essas barreiras e penetrar no tumor, permitindo que nossos soldados patrulheiros o destruam. É como se fosse uma grande guerra”, ilustra.
E é neste ponto que a imunoterapia emerge como protagonista na potencialização dos nossos mecanismos de defesa. Os inibidores de checkpoint, classe de medicamentos imunoterápicos, por exemplo, atuam no bloqueio dessas proteínas responsáveis por limitar a resposta imunológica do corpo, conhecidas como PD-1 e CTLA-4. Outras estratégias imunoterápicas abrangem medidas que variam desde a prevenção, como o uso de vacinas terapêuticas, até a aplicação de métodos de fortalecimento imunológico. Isso inclui terapias baseadas em anticorpos monoclonais produzidos em laboratórios e a administração de medicamentos imunomoduladores, capazes de inibir a formação de novos vasos sanguíneos nos tumores. A técnica CAR-T, que envolve a modificação genética das células T dos pacientes – linfócitos responsáveis por combater agentes infecciosos – permite o reconhecimento e a destruição das células cancerígenas.
“A imunoterapia pode ser mais eficaz do que quimioterapia e radioterapia em alguns tipos de tumores, como melanoma avançado e pulmão, além de poder causar menos efeitos colaterais.
Por outro lado, a abordagem imunoterápica ainda não é uma opção viável para todos os tipos de câncer e nem produz resultados positivos em todos os pacientes. A pesquisa conduzida por Evangelista destaca a necessidade de maiores investigações para compreender os mecanismos subjacentes aos efeitos colaterais decorrentes do tratamento. Esses eventos adversos podem variar desde sintomas leves, como erupções cutâneas, coceira, fadiga e diarreia, até complicações graves, como colite, hepatite, pneumonite, disfunção da tireóide e das glândulas endócrinas.
Essas adversidades surgem como resultado do uso de medicamentos na imunoterapia, que podem desencadear uma resposta hiperativa do sistema imunológico, levando-o a atacar tecidos saudáveis. Além disso, esses efeitos adversos podem estar correlacionados com fatores de risco dos pacientes, como histórico genético, idade, gênero, índice de massa corporal, função renal e até a influência do microbioma, coleção de bactérias, vírus, fungos e parasitas presentes em tecidos do corpo. Evangelista tem se concentrado na investigação de como encontrar um equilíbrio entre o controle de eventos adversos relacionados ao sistema imunológico e, ao mesmo tempo, manter a eficácia da resposta antitumoral em pacientes oncológicos tratados com inibidores do checkpoint.
Quem pode ter acesso ao tratamento?
A cobertura da imunoterapia por planos privados e sistemas públicos de saúde ainda é uma questão em aberto no Brasil. Embora em 2022 a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados tenha aprovado um projeto que prevê a inclusão da abordagem nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do tratamento do câncer, sempre que se comprove ser mais eficaz e segura do que opções tradicionais, o acesso a esse tratamento ainda é limitado à maioria da população. Dependendo da doença, seu estágio e duração do tratamento, seus custos podem variar entre R$30 mil a R$50 mil por mês.
Via de regra, o tratamento pode ser obtido tanto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quanto por serviços privados, dependendo das circunstâncias e do estado de saúde do paciente. Pelo SUS, ele geralmente é disponibilizado para pacientes com câncer em estágios avançados ou em situações específicas quando o médico julgar apropriado, baseado em critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Caso o paciente não possa custear o tratamento, é possível que o Estado o forneça, principalmente se for considerado essencial e indisponível na rede pública. Nesses casos, é possível buscar orientação jurídica para recorrer ao acesso. Nos casos de plano de saúde, alguns podem cobrir tratamentos com imunoterapia, enquanto outros podem ter restrições, dependendo do tipo de plano, da rede credenciada de hospitais e médicos, bem como das regras específicas da operadora.
Em situações em que o tratamento imunoterápico não é possível, Evangelista enfatiza a busca por procedimentos já existentes e que também podem trazer bons desfechos clínicos, como a radioterapia e a quimioterapia. “Há casos que pacientes, mesmo tendo comprovado condição oncológica para receber a imunoterapia, podem não ter aprovação por questão de custo ou situações em que o médico pede um tipo de tratamento já aprovado, mas que não é de muita recorrência para aquela utilização. (…) Independentemente disso, precisamos sempre procurar todas as possibilidades disponíveis, escolher um médico de confiança, seguir suas recomendações e apostar num bom tratamento”, orienta.
Embora a imunoterapia represente um avanço significativo no tratamento do câncer, sua aplicação requer uma abordagem criteriosa e personalizada, levando em consideração as características individuais de cada paciente e uma vigilância constante para minimizar os efeitos adversos. A participação do público em pesquisas como a de Evangelista também é outro fator essencial para aprimorar a compreensão do tratamento e torná-lo cada vez mais seguro, acessível e eficaz.
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Que saber mais?
🎧 Ouça a entrevista completa no Imuno Agentes Podcast:
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- Guilherme Evangelista (doutorando)
- E-mail: guilherme.evangelista@einstein.br
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- Kenneth Gollob (orientador e diretor CRIO)
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